domingo, 29 de maio de 2011

aos olhos perolados


Certo dia vi um filme muito estranho...um drama muito excêntrico, frio, mais gelado que o país de origem. Contava a história de uma mulher tentando obter a guarda uma uma criança lindíssima chamada Guita, que em húngaro significa "pérola". Foi então que nasceu esse conto, para uma amiga que me lembrou muito Guita, a menina perolada.




                                        "O espelho para os olhos perolados"    
No ambiente ainda se ouvia o despertador rigorosamente correto. A exatidão e a harmonia com que seus objetos funcionavam eram enlouquecedoras. Um de seus escritores prediletos diz que toda perfeição traz consigo um caos. Mas a leitura daquelas letras já fora findada há muito. Guita esqueceu a antiga conduta dentro de um livro castigado pelo efeito do arrancar as folhas do calendário. O tempo é implacável. E isso quase teria sido notado se não fossem as rugas disfarçadas com a melhor maquilagem que o mercado oferece as roupas impecavelmente limpas e de um branco imaculado, saltos finíssimos e um rosto escondendo secretas cirurgias plásticas. Definitivamente, o bisturi levara a idade e a antiga expressão de um alguém que não tinha coragem de enfrentar o próprio espelho. 
     Porém, naquela manhã foi inevitável encarar a própria imagem, pois o encontro com o espelho foi acidental. O objeto refletor encontrava-se escondido atrás de um velho armário traidor que acabou entregando a Guita uma imagem dela própria. Algo estranho acabava de acontecer: recordou os cabelos longos e claros, o espírito e as roupas jovens, listras na camisa e all-star surrado nos pés. Lembrou-se de como jamais passava inerte aos olhares masculinos, que faziam verdadeiras festas com os olhos quando a moça estava nas redondezas. Até fez uma pose e um apontamento para os próprios olhos como antigamente, em sinal de um início rápido de intimidade consigo mesma. Os desejos de um mundo igualitário. O pão para todos. Sorriu, pois sabia que agora seu pão era maior que o de todos os outros. Justamente o dela. As festas, os sorrisos, o viver, o álcool, o carpe diem,o cigarro,as fugas curtas,o consolo no velho tronco de árvore,os livros de cabeceira,a casa do campo e o cheiro traziam lágrimas aos olhos perolados que jamais perderam um certo ar de mulher feita.           
  Guita continuava causando frenesi entre a ala masculina e por isso não deixou uma só gota de lágrima correr em seu pálido rosto levemente rosado e brilhante com o sol da manhã. Nada poderia ter causado tanta reflexão e tantas lembranças em uma mente confusa e atormentada pelo passado.E como os tempos do “time is money” têm contagiado Guita até seus últimos fios brilhantes,ela percorreu desesperadamente o trajeto do espelho até a cozinha na ânsia de engolir o último pedaço de pão cheio de desespero. No íntimo,ela sabia a causa de tanta pressa:não devia olhar pra dentro. 
   Aquela mistura pão-leite-espelho-maquilagem-olhos-cabelo-salto foi sendo digerida no caminho até o carro,e ainda foi permitida uma pausa rápida pra dois beijos,o do filho e do marido. Olha só! e veja se não é esse o homem dos sonhos de qualquer mulher....cheio de segurança,músculos vestidos em uma belíssima camisa de linho branco, terno impecável, olhos doces, a barba por fazer ainda, sorriso absolutamente enigmático-encantador e ainda o mesmo desde o primeiro encontro. Mas,então, o que era aquilo que atormentava Guita nas horas secretas desde o casamento? Por que ela não conseguia deitar mais com aquele divino homem ao seu lado?Lembrou-se, com um sorrisinho de escárnio, de como ele era o desejo de todas as suas  amigas, que nunca segredaram tal fato. Guita levara-o como conquista, então? Por que já não sabia o que dizer nas horas de solidão a dois?  desejo de consumo feminino findou-se no altar - nada é o que parece ser. E o filho? Ele era seu conforto, o porto seguro, o tudo- sempre e o motivo de Guita ainda conseguir pensar em suportar algo nessa vida azeda. Fitou o filho e ainda viu naqueles olhos infantis um motivo pra amar. Era segredo,mas o único amor capaz de sentir verdadeiramente era por aquele pequeno ser. Jamais o restante foi capaz de desconfiar.Doce trabalho de atriz. E aquela mistura estava fervilhando no estômago.           
  Percorreu as rodovias,estacionou o carro e durante toda a manhã ficou a perguntar o motivo de ainda conseguir executar suas tarefas com imensa maestria e exatidão.Ensaiou todas as alunas de sua imensa academia de dança e,pela primeira vez, viu-se perdida nas próprias coreografias e sentada no chão entre os tutus, as fitas, as sapatilhas, o breu, o nada, a menor vontade de ser Guita e o maior fracasso que ela já encenou:a própria vida. Tantos planos, tanto ar, tanta arte. Cadê,Guita? Cadê tudo? E de repente, como num acesso de extermínio, foi arrancando a roupa, a sapatilha, as fitas, os cabelos, a maquilagem e teve o segundo encontro do dia com o espelho. Olhou novamente,mas já era outra..a jovem ficou abandonada em algum lugar muito longe, muito além, na outra margem, no outro muro, na face oculta do espelho. O olho agora é borrado, já não há apontamento. A saia não roda, o rosto não ri. A boca calou e os dentes se esconderam. Os saltos quebraram e o branco encardiu. A bailarina preferida de Guita não existia mais nos quadros.Lily Braun abandonou a inspiração da mulher perdida. Não existe mais a gravidade.   
   Ali, sem disfarces e parada diante de si mesma nua de roupas e de sentimentos, Guita olhou para os lados em um medo súbito de não estar só e perguntou a si mesma o porquê de tanta dor, tanto aperto, pouca roupa e muita lágrima. Para alguém tão leve, tão bailarina,tão bela,tão vida,aquilo era quase uma piada.E voltou andando por entre os corredores sendo aquela mesma, sem roupa, sem nada. E acabou no camarim vestindo o traje mais belo que por lá estava. E com a nova muda de roupa voltou ao carro e logo estaria em casa, após trânsito e caos. Beijo no filho,beijo no marido e espelho nunca mais.