terça-feira, 27 de dezembro de 2011

por não estarem distraídos

"Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que por admiração se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles. Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque - a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras - e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração. Como eles admiravam estarem juntos! Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto. No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos."



felizmente, nessa vida, tem quem escreva o que a gente gostaria de dizer, e jamais saberia como começar.
Obrigada, Clarice.

domingo, 6 de novembro de 2011

trocando em miúdos ou devaneios da cor roxa

Esse aqui demorou muito pra nascer, demorou tanto que eu acreditei ser necessário publicar algo inacabado. Com o tempo eu percebi que às vezes, assim como na vida, as coisas literárias que produzimos tem gosto de inacabado. Eu não sei se esse conto chegou ao fim, mas eu fui até onde ele me permitiu escrever. Acho que o mais legal foi: quem ditou o ritmo foram ela e ele. Esses dois que se separam.


Tudo se compõe e se decompõe.           
Os jornais empilhados na porta roída pelo cão denunciavam algo além das notícias mais quentes ficando geladas no chão do corredor... diziam sobre um sintoma cansado de um rapaz entorpecido pela televisão às 6 da manhã, botões da camisa, calça e papéis.           
O moço vivia de fazer cálculos para a grande cidade, gostava de montar simetrias entre cimentos, pedras, vidros, espelhos e achar belezas inanimadas, heranças de olhos sempre além do tempo, capazes de olhar com os números, sempre tão matemáticos, porém belos, inclusive belos.   
A moça vivia de cantar, gritar e chorar de vez em quando. Fazia da voz o que o moço fazia dos cálculos, grosseiramente, muito grosseiramente falando. Usava cores, mexia os dedos, as mãos, o corpo, tinha fios desiguais nos cabelos, e uma igualdade no tom do corpo de tamanho médio. Eram panos modernos suas roupas, trazendo alguma nova tendência de um lugar desconhecido para todos nós. Tinha cadernos com rabiscos modernos, cavaletes, tintas, livros, preferia gatos, mas fazia parte da sua beleza exótica aceitar os cães com igual amor e paciência.  
A refeição matinal, habitualmente devagar e bonita, era agora incômoda. O leite se tornava amargo na boca, o café doce demais e os pães alimentos indesejados, sem sabor, engulíveis.     
Havia, agora, notícias amareladas e geladas de um jornal e cachorro na sacada. Esse lugar abrigou muita gente, muita festa, muita flor dela, inspirou muito desenho dele e sempre foi sempre um território comum, espaço pra diferenças antes desejadas, agora quase necessariamente separáveis.  
Ele olhou a casa demoradamente até que escapasse a vontade insana de calcular aquele pé direito pequenamente torto, mas foi que percebeu (mais uma e pesada vez): a relação estava torta.
As cores na mesa do café, o caderno de cultura, montes de migalhas do pão de mil grãos, réguas com leite, Degas com granola, tudo estava muito misturado. Era uma manhã decisiva, embora os dois soubessem disso no silêncio de seus movimentos não comunicados um ao outro.   
A comida era devorada com uma fome incomum, e antes que fossem percebidas as incongruências dessa voracidade do engolir os pães, o moço encerrou os afazeres geométricos guardando seus rabiscos na pasta de tamanho enorme, que sempre incomodou a moça completamente apreciadora do silêncio nas refeições.      
A moça bem viu, após engolir um breve minuto de raiva com o último pedaço de pão, que os rabiscos do seu moço estavam irreconhecíveis: tinham cores e curvas novas, tão indesejadas e até evitadas em momentos de um passado quase chamado ontem. Ela sentia que as esquinas pontudas e ângulos notáveis eram uma evidência de conforto pra alguém que não desejava a incerteza do destino de uma curva. A cor preta, com lugar privilegiado nas escrituras-desenhos do moço, deu lugar, repentinamente, a uma mistura insana de roxo, vermelho, laranja e tantas outras cores mais.  Ela sentiu que a traição, se estivesse acontecendo, ou acontecido, seria na ordem do papel mesmo, mas jamais imaginava que seria algo ao nível das cores, e algo desse tipo era quase como se tivesse sido substituída pela união de todas as belíssimas mulheres desse mundo. Percebeu mais potencial de traição na cor roxa que numa reunião de perfeitas curvas femininas, era um raciocínio esquisito.         
Dentro dela, agora, existia uma agilidade transformando todas as cores, ao invés de branco, em negro. Toda aquela cor do desenho  tornou-se motivo de um medo que tomou conta de todos os litros de leite da mesa, de todos os pães, de todos os talheres, chegando ao cão na sacada. O latido foi seco e, em um delírio de segundos, ela acreditou que o animal concordava com a opção dela de registrar em carta o que estava se passando dentro  do coração aflito. O ciúme das cores a fez acreditar que ainda gostava dele o suficiente pra não ir embora sem deixar uma pequena (pequena?) carta.          

“Você é tão idiota, mas eu perdôo. Perdôo você não perceber os sinais que eu achei que formavam sua vida quadrada, cheia de esquinas. Tirei os dois baús da sala porque o restante da casa parecia um mar de antiguidade, coisas mofadas, vencidas, igual essa nossa relação. Acho interessante você só notar a falta deles quando perguntou qual cor eu gostaria pro canto escuro da sala. Teve medo de eu, mais uma e outra vez, tentar aprender a pintar em outra técnica, não é? E falhar....trazendo um novo problema pra sua cabecinha, que adora pensar em como deixar a casa do jeito mais apático possível. Deixar tudo no lugar é com você mesmo, só que tudo no lugar é cara de lugar de gente que não vive, e eu quero viver. Sinto muito. Por isso tirei os baús e também arrumei as malas. Comecei desocupando os armários dessa casa que você sempre disse ser pequena e com miudezas demais. Hoje eu afirmo com alguns grifos: melhor gostar das miudezas que viver reclamando da maldita imensidão de erro do cálculo do pé direito. Eu quero que o maldito pé direito e  esquerdo vão pro inferno! Se você ao menos notasse as dificuldades pelas quais eu tenho passado... a minha arte não tá dando conta das contas da casa, dos meus próprios quadros, do meu próprio canto, mas o pior de tudo....não está mais dando conta de mim. Ando engasgada toda vez que deito com você. Choro em silêncio por cantar o que eu não acredito mais, não acredito mais no que eu estou fazendo, e isso se misturou a você, que nunca entende meus agudos da hora das brigas, na hora do jantar, nos palcos e em todo o resto. Choro por estar com alguém que sabia ouvir meu silêncio e hoje prefere esse silêncio como postura preferencial ao lidar com as diferenças entre (minhas) cores e (seus) ângulos. Você era mais feliz quando? Quando nossas diferenças, ao invés de silêncio, geravam barulho de acordar todos os vizinhos?. Tento lembrar daquelas horas nossas de caminhada pelos parques da cidade e guardar o sabor da espera bonita que era aquela.....eu esperando você rabiscar e você esperando eu encontrar semelhanças entre o vento e minha voz. Eu poderia ser bondosa e esperar o tempo que for, mas você não anda...corre! e não sei como conseguia fazer registros naquela intensidade de passo, nessa correria que não é da Terra. Achava terrível ter que percorrer quilômetros e quilômetros com você riscando quase o vento, porque não imagino imagem que resista àquela velocidade. Eu queria mesmo é coragem o suficiente pra dizer tudo isso assim, olhando pra você. É tão difícil parar para pensar que as pessoas (?) mais aptas pra falar sobre seus viveres são os porteiros, as árvores, a rua, os vizinhos, talvez até a cor roxa diga melhor sobre você, melhor do que eu mesma faria. Foi olhando ela hoje nos seus desenhos que percebi você já não é comigo, e isso é tão sofrido. Sinto por meu sofrimento vir explosivamente, mas algo precisava acontecer. Algo sórdido como um término em uma carta precisava acontecer, assim você terá fatos engraçados (não agora, daqui algum tempo) pros jantares da sua família, sempre recheados de notícias velhas  (e geladas, como as do jornal que estava hoje de manhã na porta). Eu não quero dizer sobre sua família, acho que acabou virando o assunto porque eu já não sinto que nós dois somos uma ...uma família, e de alguma eu precisava falar, assim como falei de assuntos desconexos vários- cores, baú, pé direito. Eu enlouqueci em nós. Sinto que fomos o ponto final mais bonito que poderia ter sido, acabou sendo até poético. Nossos parágrafos estão muito corretos, nossas paredes muito brancas, o silêncio parecendo anestesia de alguns (vários) anseios e a cor roxa invadiu seu desenho. Eu gostaria de dizer que vou embora. Não existe mais vontade, embora haja amor.”     


Terminada a carta, a sensação era quase um alivío, porém mais rasgado e úmido de lágrimas. Escrita a última palavra, ela foi sentindo que ir embora era mais que fechar as malas e deixar a chave com aqueles que sabiam mais de seu moço que ela própria. Era, por fim, preciso sentir que aquela era a última possibilidade de reverter as cores, o roxo, os sliêncios e qualquer coisa parecida. A carta mais parecia um ultimato, porém, ali no fundo do peito, ela sabia que se fosse realmente um ultimato, não havia motivos para percorrer a casa a passos lentos e comtemplativos, vazia de seus pertences e cheia de novas cores dos desenhos do rapaz. A tudo que estava ali a moça foi dando um pouco de suas emoções nuas, sem disfarces. Apertou o papel com força contra o peito, "tão marcado de lembranças de passado". Deixou-o na mesa junto aos riscos roxos de seu antigo moço. Saiu. Quis olhar pra trás. Respirou fundo e apertou o passo.
Ao chegar na casa de seu velho amigo, a supresa foi maior ao abrir as malas, antes quase de desabafar aquela tristeza sem tamanho de uma separação. Viu um papel colorido no fundo da bolsa. Era uma carta que dizia:

"Querida,
dizem que pra falar mesmo do amor, com um amor e para o amor é por meio de cartas. As cartas. Aquelas que quem nunca escreveu é ridículo. Eu sei que você pode aceitar as palavras como carinho, dedicação, devoção e um pouco daquele cuidado tão seu de carregar a vida com as mãos, suas mãos lindas, de tamanho médio, brancas, que eu desenhei muitas vezes. O problema é que eu nunca fui muito bom com as palavras, meu lance mesmo é com aqueles rabiscos que você diz não entender, talvez muito escuro pra você com suas mil cores. Ultimamente tenho mudado um pouco, e isso é muito estranho, acredite. Eu não confiava em mudanças bruscas e, hoje, quando olho no espelho, só vejo mudanças. Demoro longas no horas no espelho toda manhã até reconhecer a mim mesmo. Percebi sua angústia hoje de manhã ao ver meus desenhos novos, e até acredito que você tenha se espantado, mas o que eu também queria dizer é que há muito tempo eu abandonei o monopólio do preto e branco. Vejo você longe, dançando, cantando, se retorcendo e negando meu corpo próximo ao seu diariamente. As novas descobertas que tenho feito, gostaria delas todas também junto com você, com você e com outras pessoas. Brinquei falando sobre isso com você um dia e lembro com perfeita exatidão sua frieza ao abandonar o vinho que bebia maravilhosamente, daquele jeito que você fazia quando eu me apaixonei por você quando estávemos em Veneza. Eu abri espaço na casa pra olhar melhor aquilo que faz de você essa pessoa tão agitadamente bonita. Espontânea desde os palcos onde brilha até o lavar roupa aos sábados de manhã. Queria recompor seus tons de roxo pra que pudéssemos compor novos modos de estar, respeitando suas cores, respeitando minha ausência com ela. Eu tento tido frio, medo e angústias demais. Senti que você podia ir embora, olha que coisa! Embora não como daquelas vezes que você volta no dia seguinte e me faz amar outras vezes o comprimento dos seus cabelos, a cor e a textura da sua pele e o cheiro da sua alegria. Aquele cheiro roxo de lavanda. Meu medo é que vá embora sem ter vontade de olhar pra trás. Algo de você não suporta a visceralidade da carne minha olhar outra mulher, falar com elas e achar nelas que se assemelhe ao seu cheiro roxo. Só o que eu precisava explicar com relação a isso é que a maior lição que eu aprendi abandonando o preto e branco é que as cores são infinitas, minha querida. Há o seu roxo, e milhares de outros. O seu é seu, sabe? Esquimós encontram mais de vinte tons de branco na neve, e eu encontro outros mil tons de roxo em você. Estranhei a sua cara quando eu perguntei sobre outros possíveis tons pras paredes da sala. Queria você nessas paredes. Queria você como parede, pra compor meu novo lar. Queria reinventar você como nova estrutura desse lar que precisava ser reinventado. Mas acho que você está ofendida. Eu acho desnecessário falar sobre amor, pra você que ensinou para mim que amar só se aprende amando, e que ele é a coisa menos pedagógica que existe. Eu só te amo da mesma forma como vejo cores do vento, correndo com você pelo parque da cidade, vendo você em todos os movimentos que sua voz pode inventar. E há cores neles, muitas delas em tom roxo. Muitas delas de um jeito que eu ainda quero reinventar muitas vezes com você. Sei que você vai e talvez não volte. Você vai sem saber dos cacos que larga no caminho, você sempre foi assim, sem saber das consequências do branco e preto que você espalha com a sua ausência. Abraço demorado."

Ela quase perdeu-se nas próprias lágrimas, acreditando que tudo aquilo era um rio envolta dela. Como era confuso estar sem uma parte que a gente não sabe que já faz parte da gente, pensou com cabelos ao vento, com a alma nas mãos.

Ao chegar em casa, ele não percebeu os buracos nos armários, as prateleiras sem vestidos, as ausentes mandalas roxas, os milhares de badulaques miúdos faltantes. Ele percebeu o papel úmido amassado com cheiro do perfume dela. Ele não precisava nem ler para saber que era uma carta dela. E essa era a pior lembrança, por ser a mais pura, mais ausente de palavra e sinestesicamente muito falante, gritante.... Ela com seu cheiro de lavanda sorrindo quando via bonitezas.
Ele acendeu o cigarro, apertou as mãos pra proteger-se do frio de agosto e começou seu novo desenho. Preto e branco.




sábado, 5 de novembro de 2011

com esses meus (?) olhos.

Esses olhos vidrados
vidrilhos
ágeis, cortantes..
certeiros, errantes..
nesse mundo
não cansam de, todo dia,
vidrados
verem o de novo visto
a primeira vista

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Toca-me


                Ela pede pro amor entrar.
                Ele, por zomba, ri enquanto
                corre por entre as árvores,
                brinca de se esconder da menina,
                a menina... a menina só.

                Às vezes se deixa ser visto
                - borbulha nos olhos dela –
                Mas some...
                E ela... ela o procura,
                evoca o seu nome, seu nome e só.

                E quando, cansada em suspiros,
                a menina se desmancha,
                ele a observa...
    aproxima-se lentamente...
                E, com um meio sorriso, deixa-se tocar.

Esse aqui eu ganhei de uma amiga muito querida, momentos após notícias e momentos de muitas angústias, dias negros e uma época muito depressiva. Depois de algum tempo, acho digno compartilhar. Agora por novos motivos e outros olhos.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

para uma pessoa de carne-osso-vida-amores.

Certas coisas poderiam ser ditas de maneira mais elaborada à medida que o texto seja lido e revisado algumas vezes, mas acredito que algumas escritas precisam ser registradas justamente como vieram à mente...ácidas, puras, cheias de verbos, pontos...e dispostas a deixar perguntas ao invés de respostas prontas, como gostam muitos desses jornais e programas sensacionalistas (que se acham última moda em questão de divulgas a notícia ao mundo). 
Ela morreu.........sim, morreu.          
Vieram à tona milhares de relatos e justificativa para um ato que mais parecia destino, sina, fatal para percorre um caminho “sem volta”, “perverso”, “imaturo”, quase uma “rebelde sem causa” a mulher morta que divulgou a imprensa.      
E antes mesmo de sabermos quem é essa mulher (não só respondendo à pergunta com um nome de batismo completo...), o que cantava, o que diziam essas músicas, o que eram suas letras, com que fúria rasgava seus papéis quando gritava de ódio, qual era a tinta que registrava um coração rasgado e amassado de uma mulher dilacerada, qual a dose que deixa a situação mais aveludada, é o álcool, é o crack, é a maconha, quando chora, quando sofre...o que se faz? Quem se chama? Ela canta? Ela canta....ela canta pra exorcizar os demônios, afastar a dor, aprumar a alegria que faz ficar em pé....o que fez a mulher gritar, rasgar...escrever..arder...cheirar...cair...rasgar a pele, cortar o coração e colocar-se de fora pra dentro..com os órgãos a mostra toda vez que canta seu luto..."back to black"....que canta seu luto e faz todos nós cremos que é aquela voz também pode cantar o meu, o seu, o luto de todos nós, todos nós que já perdemos um amor, deixamos as rédeas escorrerem entre os dedos.
Antes que olhássemos isso e muito mais em uma pessoa que teve sua morte friamente anunciada em todos os meios de comunicação, fomos observando as manifestações vigentes, reflexos de sinceras “coisificações”, generalidades....brutalidades...“morreu a diva.....desequilibrada, sofrida, mas sempre podendo cantar seu sofrimento”.
Quem de nós aqui nessa humanidade é equilibrado o suficiente pra dizer sobre o semelhante que se esfarela?...deixa-se dissolver lentamente no mundo das drogas.... O que representa o uso da droga na vida de uma pessoa? E na vida dessa pessoa de que falamos especificamente?...porque é disso que estamos falando! De uma pessoa de verdade! Com carne, ossos, tatuagens brutas, viscerais, cabelos espetados, olhos sessentistas, dentes em falta, saltos finos, pernas quase quebráveis... Se é pra falar do pó, da erva ou do que quer que seja, que se fale de uma pessoa! Que viveu uma vida....traçou um caminho e história...que nem sempre foram regados à festas, drinques, misturas efusivas e perigosas....e que tudo isso fez parte de um caminho, de uma rota...por algum motivo que escapa dos tablóides ansiosos pelos bons números que irão render essa morte quase glamurosa.    
O que eu sei é que há sempre algum motivo de vida, de morte, de ser....que escapa a nossa tentativa de explicar o que é uma vida e como ela merece ser experienciada. Não morre uma voz...morre um ser....morre um modo de estar e compor o percurso de todos que se sentem identificados com os lutos...."back to black"...com as lágrimas....com os amores estraçalhados no meio dos caminhos.
Morrer um ídolo é morrer alguém que disse por nós...disse em nome da Ana, da Maria, do José e do João.... quem chama hoje essa mulher de ídolo sabe disso?..esses jornais que dão-se por direito a chance de falar de roupas, vícios, tropeços, amarguras e amores de uma jovem mulher...encontrar os profissionais especializados pra dizer os motivos racionais, cartesianos de tanto álcool, tanta droga, muito amor doentio, e pouca reabilitação.
Quando eu morrer alguém vai preocupar-se em discorrer sobre todas as teorias possíveis e imagináveis do porquê das minhas manias, gestos, vozes, amizades, amores, alegrias e mágoas? ........................eu espero que não. Mas com Amy eu já vi acontecendo hoje.


(no dia da morte de Amy Winehouse)

quarta-feira, 15 de junho de 2011

pessoa-nuvem de hoje.

Bonito é embriaguez de nuvens.
Pés firmes nesse chão tão leve, faz o corpo fluir em outra vibração ...
nuvem vento branco, céu verde líquido com água morna escorrendo como em cachoeira
tudo em cores de ventania, essa sua é um existir céu-nuvem-par inenarrável.
existe como em forma de ar, mexendo, gestos riscados no céu, marcados em nuvem.
vibrações de vozes tocam esses riscos, esse contorno voz veludo começa a pintar aquarela instantânea
como se o dia fosse luz, e a noite fosse ainda o dia dessa luz...
virando tudo mistura noite-dia-cheiro-vento-espaço-veludo.
gosto desse espaço de silêncio entre suas vogais.
gosto muito das suas vogais, aliás.

domingo, 29 de maio de 2011

aos olhos perolados


Certo dia vi um filme muito estranho...um drama muito excêntrico, frio, mais gelado que o país de origem. Contava a história de uma mulher tentando obter a guarda uma uma criança lindíssima chamada Guita, que em húngaro significa "pérola". Foi então que nasceu esse conto, para uma amiga que me lembrou muito Guita, a menina perolada.




                                        "O espelho para os olhos perolados"    
No ambiente ainda se ouvia o despertador rigorosamente correto. A exatidão e a harmonia com que seus objetos funcionavam eram enlouquecedoras. Um de seus escritores prediletos diz que toda perfeição traz consigo um caos. Mas a leitura daquelas letras já fora findada há muito. Guita esqueceu a antiga conduta dentro de um livro castigado pelo efeito do arrancar as folhas do calendário. O tempo é implacável. E isso quase teria sido notado se não fossem as rugas disfarçadas com a melhor maquilagem que o mercado oferece as roupas impecavelmente limpas e de um branco imaculado, saltos finíssimos e um rosto escondendo secretas cirurgias plásticas. Definitivamente, o bisturi levara a idade e a antiga expressão de um alguém que não tinha coragem de enfrentar o próprio espelho. 
     Porém, naquela manhã foi inevitável encarar a própria imagem, pois o encontro com o espelho foi acidental. O objeto refletor encontrava-se escondido atrás de um velho armário traidor que acabou entregando a Guita uma imagem dela própria. Algo estranho acabava de acontecer: recordou os cabelos longos e claros, o espírito e as roupas jovens, listras na camisa e all-star surrado nos pés. Lembrou-se de como jamais passava inerte aos olhares masculinos, que faziam verdadeiras festas com os olhos quando a moça estava nas redondezas. Até fez uma pose e um apontamento para os próprios olhos como antigamente, em sinal de um início rápido de intimidade consigo mesma. Os desejos de um mundo igualitário. O pão para todos. Sorriu, pois sabia que agora seu pão era maior que o de todos os outros. Justamente o dela. As festas, os sorrisos, o viver, o álcool, o carpe diem,o cigarro,as fugas curtas,o consolo no velho tronco de árvore,os livros de cabeceira,a casa do campo e o cheiro traziam lágrimas aos olhos perolados que jamais perderam um certo ar de mulher feita.           
  Guita continuava causando frenesi entre a ala masculina e por isso não deixou uma só gota de lágrima correr em seu pálido rosto levemente rosado e brilhante com o sol da manhã. Nada poderia ter causado tanta reflexão e tantas lembranças em uma mente confusa e atormentada pelo passado.E como os tempos do “time is money” têm contagiado Guita até seus últimos fios brilhantes,ela percorreu desesperadamente o trajeto do espelho até a cozinha na ânsia de engolir o último pedaço de pão cheio de desespero. No íntimo,ela sabia a causa de tanta pressa:não devia olhar pra dentro. 
   Aquela mistura pão-leite-espelho-maquilagem-olhos-cabelo-salto foi sendo digerida no caminho até o carro,e ainda foi permitida uma pausa rápida pra dois beijos,o do filho e do marido. Olha só! e veja se não é esse o homem dos sonhos de qualquer mulher....cheio de segurança,músculos vestidos em uma belíssima camisa de linho branco, terno impecável, olhos doces, a barba por fazer ainda, sorriso absolutamente enigmático-encantador e ainda o mesmo desde o primeiro encontro. Mas,então, o que era aquilo que atormentava Guita nas horas secretas desde o casamento? Por que ela não conseguia deitar mais com aquele divino homem ao seu lado?Lembrou-se, com um sorrisinho de escárnio, de como ele era o desejo de todas as suas  amigas, que nunca segredaram tal fato. Guita levara-o como conquista, então? Por que já não sabia o que dizer nas horas de solidão a dois?  desejo de consumo feminino findou-se no altar - nada é o que parece ser. E o filho? Ele era seu conforto, o porto seguro, o tudo- sempre e o motivo de Guita ainda conseguir pensar em suportar algo nessa vida azeda. Fitou o filho e ainda viu naqueles olhos infantis um motivo pra amar. Era segredo,mas o único amor capaz de sentir verdadeiramente era por aquele pequeno ser. Jamais o restante foi capaz de desconfiar.Doce trabalho de atriz. E aquela mistura estava fervilhando no estômago.           
  Percorreu as rodovias,estacionou o carro e durante toda a manhã ficou a perguntar o motivo de ainda conseguir executar suas tarefas com imensa maestria e exatidão.Ensaiou todas as alunas de sua imensa academia de dança e,pela primeira vez, viu-se perdida nas próprias coreografias e sentada no chão entre os tutus, as fitas, as sapatilhas, o breu, o nada, a menor vontade de ser Guita e o maior fracasso que ela já encenou:a própria vida. Tantos planos, tanto ar, tanta arte. Cadê,Guita? Cadê tudo? E de repente, como num acesso de extermínio, foi arrancando a roupa, a sapatilha, as fitas, os cabelos, a maquilagem e teve o segundo encontro do dia com o espelho. Olhou novamente,mas já era outra..a jovem ficou abandonada em algum lugar muito longe, muito além, na outra margem, no outro muro, na face oculta do espelho. O olho agora é borrado, já não há apontamento. A saia não roda, o rosto não ri. A boca calou e os dentes se esconderam. Os saltos quebraram e o branco encardiu. A bailarina preferida de Guita não existia mais nos quadros.Lily Braun abandonou a inspiração da mulher perdida. Não existe mais a gravidade.   
   Ali, sem disfarces e parada diante de si mesma nua de roupas e de sentimentos, Guita olhou para os lados em um medo súbito de não estar só e perguntou a si mesma o porquê de tanta dor, tanto aperto, pouca roupa e muita lágrima. Para alguém tão leve, tão bailarina,tão bela,tão vida,aquilo era quase uma piada.E voltou andando por entre os corredores sendo aquela mesma, sem roupa, sem nada. E acabou no camarim vestindo o traje mais belo que por lá estava. E com a nova muda de roupa voltou ao carro e logo estaria em casa, após trânsito e caos. Beijo no filho,beijo no marido e espelho nunca mais.


domingo, 20 de março de 2011

há belezas.




Há beleza que veste as cores que a gente não vê, e não deixa de ser coisa de carne, vermelho, vistoso, bonito. Veste levezas gostosas de carregar até no bolso, na bolsa, no pescoço, e por onde se quer andar. Toca estes ombros em um encontro doce, fervente, delicado, vermelho morno. Pisa firme nesses pés ..nesse caminho terra e verde... não importando a chegada, a partida ou o destino: o nosso já é estar em terra percorrendo nós mesmos. Segue inaudível  pra ouvidos habituados aos passos firmes, gritantes e dolorosos, estraçalhando corações na estrada. Há beleza que a gente não grita, sugere.

Sugere um papel, como num sinal de escrita em branco, em que todo branco é um colorido na sutileza de um par de cores. Uma coisa de sol poente, que não ferve no rosto, mas brilha nos olhos. Brilho de coisa que gente gasta numa procura mais seletiva no céu da cidade, onde não é fácil achar a estrela preferida. Há coisas de sentar nessa sombra, toalha xadrez, frutas frescas e ter colo dessa carne. Há beleza que a gente não faz, olha.

Olha como é harmônico esse mundo que se move nesse contorno de alguém, de tantos alguéns. O que há em se dedicar tardes aos objetos de seu lar?(.) Combina as vestes das camas, de si, dos armários, dos amores, dos queridos, dos desejos. Há furacões nesses invisíveis, pregados nas paredes, expostos nos tetos, pendurados nos cabides, empoeirados na estante dos livros. Há muito grito nessa sua beleza, grito não audível. Há beleza que sai e não bate a porta.

Batendo a porta, entrando na casa, invadindo todos os cômodos, bagunçando a sala, ordenando a vida... a gente também gosta dessas brutalidades gritantes. Mas há tanto movimento nesse seu silêncio também.... esse silenciar ensurdecedor nesses ladrinhos da casa. Seus pertences no armário dizem mais que seus livros na mesa da sala. Meus brincos nas orelhas dizem mais que o lindo decote do meu vermelho vestido. Há beleza que está no menos e não no banho cama e mesa.

Mesa cabendo nossos espaços, de dois copos, dois pratos, quatro talheres e vista bonita pro jardim da estrada.....que vai e vem tanta gente,tantas lágrimas,tantas dores, outros lares, outros vermelhos, outros brincos, outros armários, outras belezas.

há beleza vai embora e deixa um bilhete
dizendo de tão longa demora
e volta sempre outra
sempre inédita
sempre linda
há beleza que vai...mas sempre volta.

o beijo no bilhete, o ranger leve da porta....você está indo ou voltando?


terça-feira, 15 de março de 2011

velho novo novo velho amor

tua dos pés ao rosto
não nessa ordem
ou não nesse gosto
cálida florescendo nesse teu chão, teu teto
nessas paredes que contornam o doce espaço
suave..vermelho morno...como o soar do sino
às 16 na capela do monte verde e sol poente
doce como mel da laranjeira
escorrendo livre nessa boca ainda inédita pra um sabor tão já teu
forte nesse tufão
voraz vento que leva teus cabelos pra um lar branco e feito meu travesseiro
livre como onda pequeníssima
não esperando ir tão longe num mar distante
e chegando  enorme ao meio do oceano
riso solto nas esquinas
onde rir é sempre a melhor saída
lágrima ainda quente nesses olhos
levando ainda a exata dor desse sofrimento
mãos dadas no caminho
como se não houvesse outro jeito de ser
entre laços com gosto de alguém aqui
aqui até reticências
...

sábado, 15 de janeiro de 2011

para sempre teu, Caio F.

Olha, eu poderia tentar escrever sozinha isso aqui...Claro que poderia, é muito democrático ter um blog! Acho um barato total conhecer as pessoas escrevendo o que gosto, sou, quero ser, sonho e compartilhar contanstantemente com algumas pessoas a versão escrita de mundo que elas tem pra mostrar. Mas a grande quetão é que eu me esqueço de como algumas coisas são ditas de uma maneira tão única, jeitosa e maravilhosa que fica extremamente complicado falar sobre esse lance, quanto mais escrever. Uma coisa de dentro pra fora, pra pegar as pessoas com coração na mão e lágrima nos olhos. Tem gente que é sei lá. Tem gente que é Caio Fernando Abreu, de quem leio a biografia não biografia..."Caio não cabia em uma vida. Mas sim uma tentativa de registrar nossa amizade, em velhas cartas e textos que não descansam nas estantes e que, a cada releitura, ficam mais atuais", segundo a própria autora Paula Dip.
Isso aqui é sobre amar, separar-se, amar.
Obrigada, Caio F.
(Leiam um dia algo, qualquer coisa....recomendo, pra começar, "Pra uma avenca partindo")
Obrigada, Dani, por fazer esse encontro tão delicado eu e Caio.


"O bicho homem não faz outra coisa a não ser pensar no amor. Até as relações de produção, a luta de classes, a ecologia, o jogo pelo poder: tudo, questão de amor. Formas de amor. Amor é a palavra que inventamos para dar nome ao Sol abstrato em torno do qual giram nosos pequeninos egos ofuscados, entontecidos, ritmados. A vida toda. Mas se me perguntarem o que quero dizer com isso, não tenho resposta. O que quero dizer é justamente o que estou dizendo. Não estou com pena de mim. Tá tudo bem. Tenho tomado banho, cortado unhas, escovado os dentes, bebido leite. Meu coração continua batendo-taquicárdico, como sempre. Dá licença, Bob Dylan: It's all right man, I'm just bleeding. Tá limpo. Sem ironia. Sem engano. Amanhã, depois, acontece de novo, não fecho nada, não fechamos nada, continuamos vivos e atrás da felicidade, a próxima vez vai ser ainda quem sabe mais celestial que desta, mas infernal também, pode ser, deixa pintar. Se tiver aprendido lições (amor é pedagógico?), até aproveito e não faço tanta besteira. Mas acho que o amor não é cursinho pré-vestibular. Ninguém encontra seu nome do listão dos aprovados. A gente só fica assim. Parado olhando a medida do Bonfim no pulso esquerdo, lado do coração e pensando, pois é, vejam só, não me valeu."


("Para sempre teu, Caio F. Cartas, conversas, memórias de Caio Fernando Abreu. De Paula Dip.Editora Record.2009)

sábado, 8 de janeiro de 2011

.pra você, Miguelito.

Não tenho dúvida de que muitos, ou todos nós, temos dificuldade em falar sobre amor..o que é amor, afinal?...não sei ao certo se fazemos a pergunta sempre a fim de conseguir uma única e verdadeira resposta ao longo de uma vida, ou se as novas e sempre diferentes formas como essa pergunta nos aparecem na vida é que realmente move a gente o tempo todo...tenho as minhas dúvidas.        
Uma das minhas últimas formas de perguntar pra mim mesma o que era amor veio de uma forma dolorosamente bonita, arriscaria dizer coisas de muitas lágrimas.           
Acho que você era tão presente na minha vida, que hoje escrever  é uma das formas de sentir-me ainda com você aqui ao lado..andando, saboreando sua comida tão silenciosamente a ponto de eu achar que o alimento era o ar, sempre passando sutil nesse andar tão famoso entre todas as literaturas, o andar felino..ficando em silencio em seus cantinhos, sussurrando as suas comunicações incomunicáveis, os miados.         
Só a gente que vive com a eles sabem, só os donos de animais sabem...e não tenho dúvida alguma em dizer que ninguém é dono de gato algum...só eles, os que dizem ser donos, compartilham comigo essa sensação de saber amar em uma forma nova de amor felinamente silenciosa.             
Hoje eu sei menos sobre a resposta, a pergunta virou a minha constante resposta com a sua ausência..e foi isso que ela me ensinou: a gente ama na vida, no cotidiano, assim como eu amo o que você é, foi e será todos os dias..eu amo uma pergunta-resposta-silêncio.      
Um ser gato é uma forma tão longe e diferente do que nós humanos entendemos  sobre amor, afeto, carinho e atenção..que me ensinou a mudar a minha resposta pra uma pergunta permanente. 
Eu demorei pra chorar a sua morte, como demorei pra entender esse nosso amor.
E acho que nunca vou entender completamente...ainda bem.