sexta-feira, 20 de julho de 2012

Eu sei, não é assim


Por enquanto eu só consigo lembrar-me de que era ela, estranhamente, a única pessoa a acertar a temperatura da água do meu banho no inverno, do meu café de todos os dias e de todas as outras bebidas geladas também. Sua mão era gelada, o coração muito quente...
Lembro, com menos vivacidade, porém, a bela maneira dessa mulher protestar contra meus ataques doentios de ciúme em resposta à leveza dos tecidos que revelavam não só suas belas pernas, como também a beleza reticente de suas coxas.
Desculpas.
Não vou ver importância na falta de corte dos seus cabelos, em suas unhas por fazer ou na infeliz combinação de cores das suas roupas. Você sempre diz fazer isso, mas eu, sinceramente, nada vejo. E por isso também peço desculpas.
Perdão, perdão.
Por ficar calado, estarrecido, diante das maiores desgraças no continente africano e ter frenesi verbal a respeito do último lançamento da Apple.
Desculpe-me pelos elogios por fazer, a louça a lavar e as pendências de vida que eu não consegui desenvolver junto ao hare krishna na esquina da Rua Augusta com a Avenida Paulista.
Eu não entendo nada a respeito dos maus espíritos, agouros, energias não vibrantes que você espantava com cheiros de incenso, mas, por amor, por favor, peço que me deixe impregnado com esse cheiro agora. Até, até que enfim, eu vomite todo esse modismo de escrever cartas com o qual você me enfeitiçou.
Eu prometo.
Eu prometo respeitar todos os seus oráculos como se fosse eu mesmo quem os tivesse ouvido. Há rumores de que eles sussurram todas as noites em seus ouvidos.
Mas, também, é nesse bando de espírito que eu vou me agarrar se você não voltar. Você vai voltar?
Vou falar mais baixo, as letras estão pulando em você.
Prometo não engasgar mais com seu perfume, reclamar menos do cheiro das suas flores e também usar menos o meu carro. Serei freqüentador assíduo do metrô em prol da camada de ozônio. Eu tenho inveja do amor que você sente pela camada de ozônio.
Terei grande prazer no esforço em afrouxar meu quadril para seguir sua dança neste lugar de tanta música.
Prometo até fingir grande eloqüência ao falar sobre o conflito étnico dos curdos, a respeito da presença dos judeus na Palestina ou sobre o “Bra- Burning”. Falarei como se fosse uma das grandes vítimas.
Discutirei todas as cenas de cinema europeu que você desejar e silenciarei após seu choro descabido ao ver repetidamente todos os filmes do Truffaut.
Velarei mais seu sono ao invés de querer mais sexo ardente.
Peço desculpas por, talvez, ter este tamanho (pequeno?) de homem perto da imensidão que você parece ser.
Eu sei, não é assim...
mas deixe-me acreditar que se eu tivesse feito tudo diferente, você voltaria.



quinta-feira, 12 de julho de 2012

Chama-se algo sobre descobrir que se tem um corpo


Tentou esticar-se ainda deitada em sua cama, estava pouco menos que empedrada. A tensão de cada fibra muscular exigia maior criatividade para descobrir como se mexer ainda naquele estado entorpecido, estranho, novo. Lembrou-se de como foi difícil chegar até lá e que últimos dias tinham rendido pequenas memórias invisíveis, latejantes.  O calor dos lençóis era dolorido ainda. Era um jeito gostoso de descobrir quantas células desconhecidas havia no seu corpo. 
Na falha tentativa de colocar pé ante pé com o corpo ainda inclinado na cama, percebeu como é orquestrada a exigência muscular para botar o corpo em mínimos movimentos. Deixou, assim, a gravidade vencer a batalha de deixar deitado seu corpo, ou que restava dele. Ficou aproveitando o poder de seu corpo, paralisando-o  em todos os pequenos cantos de si.          
A própria textura denunciava onde a rigidez de seus pedaços extrapolava os limites da pele, chegando aos dedos frios. Há algum tempo seus dedos também se encontravam assim, tal como os pés, essas primeiras pequenas extremidades a sofrer com o nervosismo das situações que explicitam a tensão da menina, semi-mulher, quiçá mulher-semi menina, quem sabe.      
Reparou ainda deitada a bagunça de seus fios de cabelo, a falta de capricho com o acabamento das unhas, a importância de se tirar bem a maquiagem todos os dias, exercitar-se com freqüência, o alto (e bom?) preço das coisas pras quais a gente se joga literalmente de corpo inteiro, e aproveitou para entender o tempo de que seu corpo necessita para se assimilar as tantas, e tantas, vivências pelas quais ele passa todos os dias. Abandoná-lo agora seria tanto desamor, tanto. Deixou-se envolver consigo mesma como se aquilo fosse um ato de amor, então. 
Achou curiosa a possibilidade da dor causar arrepios ainda, ou no mínimo, risos frouxos, o riso fazia parte dos pequenos movimentos que ainda eram possíveis naquele instante. Qual é o limite de uma dor?  Em cada canto de si poderia haver uma possibilidade de resposta, mas não havia resposta pras ações que antecedem o pensamento. Era possível acreditar em ambigüidades. Há espaço para ambigüidades em vidas que não se entregam à surpresa de haver tanta possibilidade de viver? A dor também era um prazer. Ambigüidades.          
Há vida que não se esgota. Há corpo que não se suporta. Dolorido agora era também não saber a inexatidão do tamanho de si, e essa dor também era boa de permanecer, trazendo aos olhos um corpo que há tempos grita: “Ei, eu estou aqui, olha pra mim”. Mais ambigüidades.       
Latejava. Latejava. Latejava algo mais que as fibras musculares. Latejava uma pequena flor querendo nascer de uma semente seca, com vergonha do calor que roubaria do sol para nascer, das águas dos rios para beber, das cores que, ao nascer em si, seriam capazes de competir com o arco- íris nascendo após chuva em pleno verão. Lembrou-se, então, a linda e insistente tarefa da semente, segundo o autor preferido: “a semente ensina a não caber em si”. Pequenos espasmos musculares indicavam a hora de levantar-se.   
O braço conseguia erguer as mãos, para que elas pudessem mexer os cabelos cacheadamente desordenados, a pele alva guardava alguns reflexos dos raios da manhã, e a gravidade foi sendo vencida com calma , sem a pressa desse mundo. Sentiu que acontecia um pequeno resgate de partes de si, dispersas como mudos fogos de artifício no chão. Os pedaços começavam a ser contagiados pelo impulso inicial, provocando cada célula, lada a lado.     
Devagar, a água foi estragando o cachos, acabando com o drama da semente e, ao misturar-se com a essência preferida, lavanda, dava uma nova fragrância àquele corpo, como em sinal de bondade, gentileza. A paz que lhe restava foi surgindo da água esquentando o corpo, simulando o calor vermelho dos lençóis.       
Deixou o contágio do vermelho seguir invisível: traçou os lábios como em movimento de pinta-los,  admirando a semente que ajudara a cuidar.      
Caiu uma lágrima, mistura de solidão, vermelho permanecendo, semente crescendo. Essas coisas de “tem que não ter cabimento pra crescer”.         
Deixou-se permanecer em toalha felpuda na cadeira da varanda. Era bonito ver o sol laranja de outono compor com o vermelho dos lençóis.
Tomou seu café, sozinha.