domingo, 6 de novembro de 2011

trocando em miúdos ou devaneios da cor roxa

Esse aqui demorou muito pra nascer, demorou tanto que eu acreditei ser necessário publicar algo inacabado. Com o tempo eu percebi que às vezes, assim como na vida, as coisas literárias que produzimos tem gosto de inacabado. Eu não sei se esse conto chegou ao fim, mas eu fui até onde ele me permitiu escrever. Acho que o mais legal foi: quem ditou o ritmo foram ela e ele. Esses dois que se separam.


Tudo se compõe e se decompõe.           
Os jornais empilhados na porta roída pelo cão denunciavam algo além das notícias mais quentes ficando geladas no chão do corredor... diziam sobre um sintoma cansado de um rapaz entorpecido pela televisão às 6 da manhã, botões da camisa, calça e papéis.           
O moço vivia de fazer cálculos para a grande cidade, gostava de montar simetrias entre cimentos, pedras, vidros, espelhos e achar belezas inanimadas, heranças de olhos sempre além do tempo, capazes de olhar com os números, sempre tão matemáticos, porém belos, inclusive belos.   
A moça vivia de cantar, gritar e chorar de vez em quando. Fazia da voz o que o moço fazia dos cálculos, grosseiramente, muito grosseiramente falando. Usava cores, mexia os dedos, as mãos, o corpo, tinha fios desiguais nos cabelos, e uma igualdade no tom do corpo de tamanho médio. Eram panos modernos suas roupas, trazendo alguma nova tendência de um lugar desconhecido para todos nós. Tinha cadernos com rabiscos modernos, cavaletes, tintas, livros, preferia gatos, mas fazia parte da sua beleza exótica aceitar os cães com igual amor e paciência.  
A refeição matinal, habitualmente devagar e bonita, era agora incômoda. O leite se tornava amargo na boca, o café doce demais e os pães alimentos indesejados, sem sabor, engulíveis.     
Havia, agora, notícias amareladas e geladas de um jornal e cachorro na sacada. Esse lugar abrigou muita gente, muita festa, muita flor dela, inspirou muito desenho dele e sempre foi sempre um território comum, espaço pra diferenças antes desejadas, agora quase necessariamente separáveis.  
Ele olhou a casa demoradamente até que escapasse a vontade insana de calcular aquele pé direito pequenamente torto, mas foi que percebeu (mais uma e pesada vez): a relação estava torta.
As cores na mesa do café, o caderno de cultura, montes de migalhas do pão de mil grãos, réguas com leite, Degas com granola, tudo estava muito misturado. Era uma manhã decisiva, embora os dois soubessem disso no silêncio de seus movimentos não comunicados um ao outro.   
A comida era devorada com uma fome incomum, e antes que fossem percebidas as incongruências dessa voracidade do engolir os pães, o moço encerrou os afazeres geométricos guardando seus rabiscos na pasta de tamanho enorme, que sempre incomodou a moça completamente apreciadora do silêncio nas refeições.      
A moça bem viu, após engolir um breve minuto de raiva com o último pedaço de pão, que os rabiscos do seu moço estavam irreconhecíveis: tinham cores e curvas novas, tão indesejadas e até evitadas em momentos de um passado quase chamado ontem. Ela sentia que as esquinas pontudas e ângulos notáveis eram uma evidência de conforto pra alguém que não desejava a incerteza do destino de uma curva. A cor preta, com lugar privilegiado nas escrituras-desenhos do moço, deu lugar, repentinamente, a uma mistura insana de roxo, vermelho, laranja e tantas outras cores mais.  Ela sentiu que a traição, se estivesse acontecendo, ou acontecido, seria na ordem do papel mesmo, mas jamais imaginava que seria algo ao nível das cores, e algo desse tipo era quase como se tivesse sido substituída pela união de todas as belíssimas mulheres desse mundo. Percebeu mais potencial de traição na cor roxa que numa reunião de perfeitas curvas femininas, era um raciocínio esquisito.         
Dentro dela, agora, existia uma agilidade transformando todas as cores, ao invés de branco, em negro. Toda aquela cor do desenho  tornou-se motivo de um medo que tomou conta de todos os litros de leite da mesa, de todos os pães, de todos os talheres, chegando ao cão na sacada. O latido foi seco e, em um delírio de segundos, ela acreditou que o animal concordava com a opção dela de registrar em carta o que estava se passando dentro  do coração aflito. O ciúme das cores a fez acreditar que ainda gostava dele o suficiente pra não ir embora sem deixar uma pequena (pequena?) carta.          

“Você é tão idiota, mas eu perdôo. Perdôo você não perceber os sinais que eu achei que formavam sua vida quadrada, cheia de esquinas. Tirei os dois baús da sala porque o restante da casa parecia um mar de antiguidade, coisas mofadas, vencidas, igual essa nossa relação. Acho interessante você só notar a falta deles quando perguntou qual cor eu gostaria pro canto escuro da sala. Teve medo de eu, mais uma e outra vez, tentar aprender a pintar em outra técnica, não é? E falhar....trazendo um novo problema pra sua cabecinha, que adora pensar em como deixar a casa do jeito mais apático possível. Deixar tudo no lugar é com você mesmo, só que tudo no lugar é cara de lugar de gente que não vive, e eu quero viver. Sinto muito. Por isso tirei os baús e também arrumei as malas. Comecei desocupando os armários dessa casa que você sempre disse ser pequena e com miudezas demais. Hoje eu afirmo com alguns grifos: melhor gostar das miudezas que viver reclamando da maldita imensidão de erro do cálculo do pé direito. Eu quero que o maldito pé direito e  esquerdo vão pro inferno! Se você ao menos notasse as dificuldades pelas quais eu tenho passado... a minha arte não tá dando conta das contas da casa, dos meus próprios quadros, do meu próprio canto, mas o pior de tudo....não está mais dando conta de mim. Ando engasgada toda vez que deito com você. Choro em silêncio por cantar o que eu não acredito mais, não acredito mais no que eu estou fazendo, e isso se misturou a você, que nunca entende meus agudos da hora das brigas, na hora do jantar, nos palcos e em todo o resto. Choro por estar com alguém que sabia ouvir meu silêncio e hoje prefere esse silêncio como postura preferencial ao lidar com as diferenças entre (minhas) cores e (seus) ângulos. Você era mais feliz quando? Quando nossas diferenças, ao invés de silêncio, geravam barulho de acordar todos os vizinhos?. Tento lembrar daquelas horas nossas de caminhada pelos parques da cidade e guardar o sabor da espera bonita que era aquela.....eu esperando você rabiscar e você esperando eu encontrar semelhanças entre o vento e minha voz. Eu poderia ser bondosa e esperar o tempo que for, mas você não anda...corre! e não sei como conseguia fazer registros naquela intensidade de passo, nessa correria que não é da Terra. Achava terrível ter que percorrer quilômetros e quilômetros com você riscando quase o vento, porque não imagino imagem que resista àquela velocidade. Eu queria mesmo é coragem o suficiente pra dizer tudo isso assim, olhando pra você. É tão difícil parar para pensar que as pessoas (?) mais aptas pra falar sobre seus viveres são os porteiros, as árvores, a rua, os vizinhos, talvez até a cor roxa diga melhor sobre você, melhor do que eu mesma faria. Foi olhando ela hoje nos seus desenhos que percebi você já não é comigo, e isso é tão sofrido. Sinto por meu sofrimento vir explosivamente, mas algo precisava acontecer. Algo sórdido como um término em uma carta precisava acontecer, assim você terá fatos engraçados (não agora, daqui algum tempo) pros jantares da sua família, sempre recheados de notícias velhas  (e geladas, como as do jornal que estava hoje de manhã na porta). Eu não quero dizer sobre sua família, acho que acabou virando o assunto porque eu já não sinto que nós dois somos uma ...uma família, e de alguma eu precisava falar, assim como falei de assuntos desconexos vários- cores, baú, pé direito. Eu enlouqueci em nós. Sinto que fomos o ponto final mais bonito que poderia ter sido, acabou sendo até poético. Nossos parágrafos estão muito corretos, nossas paredes muito brancas, o silêncio parecendo anestesia de alguns (vários) anseios e a cor roxa invadiu seu desenho. Eu gostaria de dizer que vou embora. Não existe mais vontade, embora haja amor.”     


Terminada a carta, a sensação era quase um alivío, porém mais rasgado e úmido de lágrimas. Escrita a última palavra, ela foi sentindo que ir embora era mais que fechar as malas e deixar a chave com aqueles que sabiam mais de seu moço que ela própria. Era, por fim, preciso sentir que aquela era a última possibilidade de reverter as cores, o roxo, os sliêncios e qualquer coisa parecida. A carta mais parecia um ultimato, porém, ali no fundo do peito, ela sabia que se fosse realmente um ultimato, não havia motivos para percorrer a casa a passos lentos e comtemplativos, vazia de seus pertences e cheia de novas cores dos desenhos do rapaz. A tudo que estava ali a moça foi dando um pouco de suas emoções nuas, sem disfarces. Apertou o papel com força contra o peito, "tão marcado de lembranças de passado". Deixou-o na mesa junto aos riscos roxos de seu antigo moço. Saiu. Quis olhar pra trás. Respirou fundo e apertou o passo.
Ao chegar na casa de seu velho amigo, a supresa foi maior ao abrir as malas, antes quase de desabafar aquela tristeza sem tamanho de uma separação. Viu um papel colorido no fundo da bolsa. Era uma carta que dizia:

"Querida,
dizem que pra falar mesmo do amor, com um amor e para o amor é por meio de cartas. As cartas. Aquelas que quem nunca escreveu é ridículo. Eu sei que você pode aceitar as palavras como carinho, dedicação, devoção e um pouco daquele cuidado tão seu de carregar a vida com as mãos, suas mãos lindas, de tamanho médio, brancas, que eu desenhei muitas vezes. O problema é que eu nunca fui muito bom com as palavras, meu lance mesmo é com aqueles rabiscos que você diz não entender, talvez muito escuro pra você com suas mil cores. Ultimamente tenho mudado um pouco, e isso é muito estranho, acredite. Eu não confiava em mudanças bruscas e, hoje, quando olho no espelho, só vejo mudanças. Demoro longas no horas no espelho toda manhã até reconhecer a mim mesmo. Percebi sua angústia hoje de manhã ao ver meus desenhos novos, e até acredito que você tenha se espantado, mas o que eu também queria dizer é que há muito tempo eu abandonei o monopólio do preto e branco. Vejo você longe, dançando, cantando, se retorcendo e negando meu corpo próximo ao seu diariamente. As novas descobertas que tenho feito, gostaria delas todas também junto com você, com você e com outras pessoas. Brinquei falando sobre isso com você um dia e lembro com perfeita exatidão sua frieza ao abandonar o vinho que bebia maravilhosamente, daquele jeito que você fazia quando eu me apaixonei por você quando estávemos em Veneza. Eu abri espaço na casa pra olhar melhor aquilo que faz de você essa pessoa tão agitadamente bonita. Espontânea desde os palcos onde brilha até o lavar roupa aos sábados de manhã. Queria recompor seus tons de roxo pra que pudéssemos compor novos modos de estar, respeitando suas cores, respeitando minha ausência com ela. Eu tento tido frio, medo e angústias demais. Senti que você podia ir embora, olha que coisa! Embora não como daquelas vezes que você volta no dia seguinte e me faz amar outras vezes o comprimento dos seus cabelos, a cor e a textura da sua pele e o cheiro da sua alegria. Aquele cheiro roxo de lavanda. Meu medo é que vá embora sem ter vontade de olhar pra trás. Algo de você não suporta a visceralidade da carne minha olhar outra mulher, falar com elas e achar nelas que se assemelhe ao seu cheiro roxo. Só o que eu precisava explicar com relação a isso é que a maior lição que eu aprendi abandonando o preto e branco é que as cores são infinitas, minha querida. Há o seu roxo, e milhares de outros. O seu é seu, sabe? Esquimós encontram mais de vinte tons de branco na neve, e eu encontro outros mil tons de roxo em você. Estranhei a sua cara quando eu perguntei sobre outros possíveis tons pras paredes da sala. Queria você nessas paredes. Queria você como parede, pra compor meu novo lar. Queria reinventar você como nova estrutura desse lar que precisava ser reinventado. Mas acho que você está ofendida. Eu acho desnecessário falar sobre amor, pra você que ensinou para mim que amar só se aprende amando, e que ele é a coisa menos pedagógica que existe. Eu só te amo da mesma forma como vejo cores do vento, correndo com você pelo parque da cidade, vendo você em todos os movimentos que sua voz pode inventar. E há cores neles, muitas delas em tom roxo. Muitas delas de um jeito que eu ainda quero reinventar muitas vezes com você. Sei que você vai e talvez não volte. Você vai sem saber dos cacos que larga no caminho, você sempre foi assim, sem saber das consequências do branco e preto que você espalha com a sua ausência. Abraço demorado."

Ela quase perdeu-se nas próprias lágrimas, acreditando que tudo aquilo era um rio envolta dela. Como era confuso estar sem uma parte que a gente não sabe que já faz parte da gente, pensou com cabelos ao vento, com a alma nas mãos.

Ao chegar em casa, ele não percebeu os buracos nos armários, as prateleiras sem vestidos, as ausentes mandalas roxas, os milhares de badulaques miúdos faltantes. Ele percebeu o papel úmido amassado com cheiro do perfume dela. Ele não precisava nem ler para saber que era uma carta dela. E essa era a pior lembrança, por ser a mais pura, mais ausente de palavra e sinestesicamente muito falante, gritante.... Ela com seu cheiro de lavanda sorrindo quando via bonitezas.
Ele acendeu o cigarro, apertou as mãos pra proteger-se do frio de agosto e começou seu novo desenho. Preto e branco.




sábado, 5 de novembro de 2011

com esses meus (?) olhos.

Esses olhos vidrados
vidrilhos
ágeis, cortantes..
certeiros, errantes..
nesse mundo
não cansam de, todo dia,
vidrados
verem o de novo visto
a primeira vista