segunda-feira, 12 de novembro de 2012

É tempo de sagitário


O mergulho começou há alguns dias. As roupas modelando um corpo que se esvazia desse alimento que preenche uma máquina movida por uma energia que não se vê. A fome e a fartura estão na encruzilhada do surreal: não é isso que move meu ser em movimento agora, hoje, esses dias.   
O que move esse pedaço é o mesmo que provoca essa paralisia. Posso comer para andar, posso comer para ficar. Fico imóvel nas minhas composições celulares, que estão mergulhadas nessas escolhas que elas nunca fazem. Nascem sabendo, nascem fazendo, morrem fazendo e repetem-se ao longo da história de corpos misturados ao meu.
A densidade da fumaça confunde os limites do lar, os da rua, dessa paisagem da rua cheia junto ao peito cheio dessa cidade. Viramos parceiros a compor nossas invisibilidades no campo urbano da cidade. 
O meu drama é o drama urbano. Muito existir em espaços misturados, apertados em algum lugar, frouxo em outros, e todos em tons de alguma cor que suponho encontrar todos os dias, nas mesmas árvores, nas mesmas ruas a atravessar.      
Você, você que cruza o meu caminho todos os dias, certamente sabe de mim o mesmo tanto que eu mesma sei nesse momento: tenho um contorno de carne, roupas, guarda chuva nas mãos, bolsa no colo e caminho em passos cadenciados pela grande massa a se molhar, secar no resguardo de suas esperanças de uma boa semana com feriado pela frente. Intervalo para secar o suor da testa, como o lavrador dos campos, com quem posso tecer aproximações sobre uma vida possível e imaginária.          
Encontrando uma discussão árdua a respeito da pensão alimentícia, velando o sono da trabalhadora provavelmente de idade menos avançada que a minha, vendo a fome de um pequeno menino, olhando as roupas da moça que certamente chama-se Patrícia, parar em frente ao muro na saída do metrô Sumaré, pensar no verde da cidade, na companhia do casal, no dinheiro que custa trabalhar, no outro que se ganha trabalhando, na casa onde se pode estar, no corpo onde se quer morar, na estranha lógica que divide bancos verdes e azuis no metrô, pensar em quem decide por fim à vida nos trilhos, imaginar o que separa esses pensamentos da insanidade, pensar que ela..de alguma pequena, ou imaginária forma, já começou nessas linhas.    
As mãos no pescoço sustentam o cansaço de uma vida que se esgota nos números da cidade: há como pensar em presenças e ausências em um território cheio de vazios cheios? O meu vazio encontra-se feliz na cidade de São Paulo.           
Muitas vidas em um dia. Todos os dias são uma vida completa, nascendo e morrendo. Suando e secando. Chorando e rompendo. Olhando você nascer de novo. Gosto que você morra um pouco por dia, vou esperando as suas novas folhas vingarem mais esperançosas em outras cores. Gosto de confabular que inventaremos novos lugares, cores, presenças, ausências, mais permeáveis. Posso estar só. Posso estar com um milhão. Estou com você. Estou com ninguém. Estou sozinha, enfim.               
As insanidades formando um terreno brando, sob o qual fica doce caminhar. O conforto fica no departamento dos invisíveis por um mundo que se abre e fecha a cada dia. Compreendo melhor você atravessar a cidade na chuva para ficar estarrecido diante de uma obra de arte, deixar-se molhar pelos pingos furiosos de água de procedência natural duvidosa, andar por uma hora com pés inesgotavelmente cansados para sentir o cheiro do seu café preferido, passar horas em pé esperando o seu lugar preferido para sentar-se em uma mesa na livraria, esperar ser atendido pelo funcionário que sabe de forma íntima e satisfeita a respeito de seus gostos literários, ir até a casa de um amigo no meio da madrugada, feliz, rindo, entorpecido pela vida que o chama.       
Não é só durante a noite que todos os gatos podem parecer pardos.          
A vida pode parecer parda a qualquer hora do dia. 
O sem nome das ausências não se sabe de que vão formando buracos poderosos, que  colocam medos nas criancinhas a acompanhar os olhares fixos dentro de um minuto que encontram na rua a andar, andar, andar. São muitas criancinhas, jovens, velhos, em todo esse lugar. Onde cabem os buracos dessa gente toda? Onde elas guardam suas presenças? Quero andar também por esses terrenos, que sinto estarem logo ao lado. Ou no mesmo lugar onde já estou andando há dias, meses, algumas vidas.      
Troco a vontade de gritar por um “obrigada!” ao garçom do bar, o ficar parado no meio do lado esquerdo da escada rolante por um sorriso ao casal de velhos que olha minha bravura em ceder lugar aos corpos há mais tempo nesse mundo que o meu.     
Sou um pouco eu, é um pouco todo mundo. Todo o mundo está dentro da minha respiração acelerada, mãos trêmulas, esboços de sorrisos e choros desmedidos. Todo mundo está um pouco comigo ruminando meus infernos dessa composição astral que me cabe.          
Hoje é como se todos dentro de mim tivessem nascido em 25 de Novembro.        
E estivessem puxando os cabelos devagar, escorregando as unhas pelo pescoço pelado.  
Brindando no meio da rua suas alegrias, derramando lágrimas compulsivas a respeito de uma vida. De um conhecimento. De vários desconhecimentos. De tantos buracos. De tanta gente que fica, que vai embora...acena de costas e não olha pra trás.
”Vá, mas não olhe para trás...é com essa imagem que você fica se cogitar olhar”, diz Fannis, no memorável “O Tempero da Vida”.    
A chuva acabou, dando indícios do fim das lágrimas, do final da compulsão literária.     
Os astros mudam de posição, ditam o fim das linhas.         
É tempo de sagitário.

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